quarta-feira, 14 de março de 2012

Mais sobre o "Carma"





Mais uma tradução de Ashin Ottama Sayadaw, que liderou o retiro em fevereiro.

O “Eu” Impessoal

Pode parecer paradoxal que a noção de “eu” ou “mim” seja, em si própria, um fenômeno completamente impessoal que ocorre na mente dos seres, criada pela ação conjunta de fatores mentais impessoais. A personificação da mente, a identificação dos seus componentes, concomitantes ou objetos (assim como a mecânica de kamma-vipāka e até o chamado “livre arbítrio”) são, no fundo, processos sem dono e sem existência própria, que ocorrem num fluxo de experiência. No entanto, devido à falta de insight, não percebemos a nós próprios dessa forma. Devido à ignorância e ao apego não somos capazes de ver a natureza impessoal da nossa existência.

O “eu” não é uma entidade, não é algo realmente existente por seu direito próprio. Na pessoa não iluminada a ideia básica de “self” se origina juntamente com cada percepção, como um aspecto inerente do processo perceptivo, mas o “mim” possessivo, reflexivo, se origina somente de modo ocasional, quando o sentido de ego precisa reforçar sua crença em sua própria realidade. Essa forma de autoengano serve para acobertar a realidade desprovida-de-self de nossa vida, para revitalizar o sentido de “meu self”, para refrescar e reafirmar o sentido decrescente de auto-identidade. Dessa forma, conseguimos manter intacta a ilusão de um “eu” individual contínuo, que então assume o papel central em nossa história de vida. A identificação com esse “mim” nos dá a sensação de que eu sou o “ator”, “pensador”, “sujeito perceptivo”, “experienciador”, “possuidor”. Em todos esses níveis e gradações, a ideia do “self” é responsável pela distorção principal de nossa experiência. A forte atração gravitacional do self causa a deformação profunda básica da realidade por meio de nossas percepções, pensamentos e sentimentos.

Em muitas tradições espirituais cada um pode desenvolver e estender o sentido do egoísmo individual até que ele transcenda os seus limites inerentes; o self separado se dissolve em uma experiência da Unidade e fica ilimitado, uma experiência invariável, eternamente feliz, de Self Supremo. Isto, não há dúvida, marca uma realização muito alta na meditação de concentração, mas se a examinarmos do ponto de vista do ensinamento do Buddha, teríamos que fazer um diagnóstico do que ocorre notoriamente: falta do completo desapego, falta do insight proveniente de vipassanā profundo. A experiência, embora extremamente pura de certa maneira, ainda é composta de “tijolos mentais”; é criada pela mente na mente; é “pintada”. Essa experiência, tão dramática quanto possa ser, ainda é construída sobre uma sutil ilusão.

O Nível Micro Do Renascimento
O repetido processo de nascimento e de morte é análogo ao aparecimento e ao desaparecimento constantes dos momentos mentais que ocorrem continuamente numa única vida. As semelhanças impressionantes entre os dois são claras não apenas à reflexão teórica, mas especialmente por meio da experiência real nos estágios avançados de meditação vipassanā. Claro que a noção de “eu”, sendo construída pela mente, pode surgir somente nesses “aparecimentos” dos pensamentos, mas não tem referência separada deles. Assim, o aparecimento e o desaparecimento da mente podem ser vivenciados – sob a lupa de forte concentração – como uma rápida sucessão real de nascimentos, de vidas e de mortes. Há até mesmo espacinhos entre os momentos mentais!

No nível macro, isto é, na sucessão das nossas vidas, tanto quanto no nível micro, ou seja, na sucessão de momentos, as principais características do processo são virtualmente as mesmas. Em ambos os níveis:

- existe o lado resultante (vipāka) e o lado ativo (kamma, javana);

- não existe uma entidade duradoura – nenhum “eu” ou alma – subjacente ao processo;

- nada transmigra do estágio anterior para o estágio seguinte;

- a única ligação dos eventos sucessivos é a lei da causa e efeito.

Muito tempo atrás eu vi na televisão uma exibição de dominós caindo. Um time de jovens tinha colocado verticalmente 50.000 dominós em uma longa fila. Diante das câmaras de TV o líder do time deu um leve empurrão no primeiro dominó para que ele caísse contra o segundo. A segunda peça, em seguida, caiu contra a terceira, a terceira contra a quarta, e o espetáculo começou. Isso durou cerca de 5 minutos. As linhas curvas de dominós caindo – cuidadosa e inteligentemente organizadas – criaram imagens tão impressionantes sobre o chão que as centenas de espectadores, muitas vezes, irromperam em aplausos e gritos de alegria.

Essa façanha memorável ilustra a aparente continuidade da nossa vida em ambos os níveis: a cada momento dentro de uma única vida, e vida após vida, na sucessão de renascimentos. Nenhum dos dominós mudou de lugar, nenhuma parte do dominó anterior passou para a próxima. Estritamente falando, não podemos nem mesmo dizer que o impulso inicial viajou ao longo da fileira de dominós em queda. O impulso agindo entre o primeiro e o segundo dominó não foi de modo algum o mesmo impulso entre o segundo e o terceiro. Houve apenas uma relação de causa e efeito, sempre fresca, operando entre os dominós adjacentes ao longo do caminho.

Certamente, nenhuma matéria do corpo que morre passa para a nova vida. Mas devemos também entender que em última instância nenhuma parte da mente – nenhum “eu” ou alma – transmigra da velha para a nova vida. O ser na nova existência novamente desenvolverá sua própria ideia de “self”. Há renascimento, mas ninguém renasce.

O que conecta a existência passada com a presente é o mesmo que conecta o ontem e o hoje. Não é um “eu” real, mas a linhagem, a sequência, de causa e efeito.

A Fotografia Amarelada
O Buddha ensinou o caminho do meio, o caminho que evita extremos. Este é muitas vezes incompreendido. O caminho do meio não é a maneira mais fácil de concessão e transigência. Por causa da nossa fraqueza, nossa mente cai facilmente em excessos, extremos, desproporção, na parcialidade do “isto ou aquilo”. É difícil manter o caminho do meio dos sábios.

Visão correta ou entendimento correto é o primeiro fator do caminho do meio, o Nobre Caminho Óctuplo conducente ao Nibbāna. Um dos passos mais importantes no desenvolvimento do entendimento correto é uma profunda experiência da impessoalidade de todos os fenômenos mentais e materiais (anattā). Um poeta expressaria esse insight com as palavras “não há ninguém em casa”. Como salientou Ven. Nyanatiloka, sem o entendimento da natureza do não-eu da existência sempre tenderemos a cair em teorias errôneas. Por exemplo, quando as pessoas refletem sobre o Nibbāna, elas normalmente assumem que isso é um estado onde alguém existe eternamente, ou que é a aniquilação de um “eu” real. Ambas as visões representam inapropriadamente a simples, mas inapreensível realidade do Nibbāna. Não existe um “eu” para viver eternamente, nem existe um “eu” para ser aniquilado. Nibbāna é mais simples do que isso: apenas a cessação do desejo sedento, a cessação do vir a ser. Nibbāna é muito real, atingível a qualquer momento, em qualquer lugar. Embora seja, por definição, inimaginável e inapreensível.

As pessoas engendram várias concepções erradas, mais ainda quando refletem sobre o renascimento. Imaginam “eu renascerei”, “a minha alma renascerá”, “morrerei e desaparecerei”, “o ser na vida futura será outra pessoa qualquer” ou “o eu dissolver-se-á completamente com a morte”, etc. Todos estes pontos de vista erram porque assumem, direta ou indiretamente, a existência de um eu que renascerá ou desaparecerá.

Em nossa vida cotidiana nós temos que utilizar conceitos, incluindo o conceito de “eu”, “você”, “ele”, “pessoa”, etc. Se você contar para seu amigo: “Mês passado essa sucessão casual de fenômenos que constituem o ser aparente denominado “eu” passou duas semanas de férias em Mallorca”, no lugar de perguntar como foram suas férias ele poderia sugerir que você visitasse um psiquiatra. No nível da realidade convencional nós reconhecemos nossa identidade pessoal por um bom número de boas razões. O apego ao “eu”, contudo, sendo ele a fonte do tormento, é sempre supérfluo e contra produtivo.

Assim como entramos nesta vida com um delineamento de character mais ou menos distinto – com padrões de predisposição e inclinações – similarmente, na próxima vida, “alguém” nascerá “do nada” com uma configuração de pronunciadas tendências e disposições, sujeito aos resultados das ações prévias “de alguém”. Assim como em nossa existência presente não entendemos porque somos do jeito que somos, assim também o ser na vida futura não se lembrará das conexões e relações kâmmicas que poderiam explicar sua vida. Todos nós colhemos os frutos do kamma gerado em toda a linhagem de nossos “ancestrais kâmmicos”.

Imaginem o seguinte: Seus amigos próximos comparecem à sua festa de aniversário. Após o bolo, você abre seu álbum de fotos de família e comenta a respeito de uma velha foto amarelada na primeira página: “Está vendo, este sou eu quando tinha três semanas de vida” e todos começam a rir. Assim com aceitamos nossa identidade de ontem e de anos anteriores, no nível prático e convencional nós também deveríamos reconhecer nossa conectividade causal com nossas vidas passadas e futuras. Mais do que isso – e essa é a parte mais importante de todo esse ensaio – precisamos desenvolver nossa mente e tomar responsabilidade sobre toda nossa existência.

Para ajudar a compreender, podemos imaginar o renascimento contínuo de um determinado ser como o rolar de um fluxo separado da impessoal força vital ou energia. Dessa forma, podemos conceber o renascimento sem admitir a ideia de um “self” pessoal como o ser que renasce. Pensar que o ser na vida anterior fui “eu” é tão errado quanto pensar que foi outra pessoa. Nenhuma posição é muito correta. No nível da realidade convencional, no entanto, mesmo os textos buddhistas usam a linguagem da identidade pessoal: “Naquela existência o Bodhisatta renasceu como o rei dos macacos”. Mas embora você possa decidir não chamar de “eu” a seus antepassados em vidas passadas, seja gentil com o ser que seguirá sua linhagem kâmmica amanhã e na próxima vida. Assuma a responsabilidade pelo que faz, por como você pensa, pela forma que reage aos acontecimentos ao seu redor. Para encontrar a felicidade, mesmo na presente existência, temos que viver nossas vidas da melhor maneira possível e, principalmente, cultivar a sabedoria.

O Buddha falou frequentemente da vida depois da morte e censurou aqueles que tinham outro tipo de crença. Contudo, quando alguém era demasiado inquisitivo acerca deste tópico, respondia habitualmente de uma maneira indireta. Em certa ocasião, perante pessoas que não estavam preparadas para se comprometerem claramente com a ideia de renascimento, o Buddha não argumentou com elas, mas, com um sorriso, apresentou a sua sabedoria de uma forma muito pragmática: “Se praticar o bem e não houver vida depois da morte, ainda assim terá inúmeros resultados positivos na sua vida presente e será louvado pelas pessoas sensatas. Se houver uma vida depois da morte, para além de todas essas vantagens, irá ainda para o céu e assim ganhará em ambos os lados”.

O Buddha não nos ensinou a doutrina do kamma e do renascimento para estimular especulações fantasiosas sobre o passado e futuro, mas para demonstrar as leis principais da existência condicionada. Ele estabeleceu esse ensinamento para revelar a situação de insatisfação e até de perigo de todos os seres no saṁsāra – perigos que se destacam notavelmente quando consideramos os desdobramentos do kamma. Desse modo, ele concedeu um poderoso incentivo para a prática do Dhamma.

Embora o ensinamento do kamma-renascimento-saṁsāra não entre em detalhes, ele espelha e explica a natureza da realidade de um modo muito profundo e abrangente. Eu não insistiria que é a única maneira possível de ver e compreender a atualidade; numa realidade multidimensional ou “não dimensional” a lei teria que receber um formato bem diferente. Contudo, enquanto vivermos no nível da dualidade e percebermos o tempo como uma sequência linear de eventos, considero o princípio do kamma-renascimento-saṁsāra, em traços gerais, como uma lei válida governando a nossa existência.

O kamma influencia a nossa existência de muitas formas importantes, mas nunca deve ser entendido como uma espécie de destino imutável. O resultado mais importante e de longo alcance do nosso kamma passado é o renascimento em si, o renascimento em um plano particular de existência. No caso da vida humana refere-se ao local de nascimento, ao país, à família, aos pais: estas cruciais circunstâncias praticamente inalteráveis de nossas vidas ocorrem de acordo com nosso kamma passado.

O surgimento da mente e do corpo no momento da concepção, assim como durante o curso da vida, é chamado “roda de resultados” (vipaka-vatta), ou seja, os resultados de nossas volições passadas. Mais particularmente, as realidades da nossa vida – nossas características mentais e físicas, os traços de nossa personalidade, propensão para a saúde ou doença, beleza ou fealdade, a qualidade das faculdades sensoriais, a nossa inteligência, popularidade, status social e competências – tudo tem raiz nas nossas ações passadas. Assim, também, a nossa aptidão educacional, habilidade para nos ligarmos a certas pessoas em vez de outras, o sucesso na obtenção de um emprego, na gestão de uma empresa, a capacidade de fazer e manter dinheiro, etc., – essas condições também são, em grande medida, atribuídas a nós através do nosso kamma. E claro, as nossas circunstâncias, por sua vez, também influenciam os nossos modos de resposta e de reação, nossas preferências e aversões, as nossas atitudes e comportamento.

No entanto, apenas uma parte das coisas que nos acontecem são resultados diretos do kamma passado. Nós não podemos distinguir facilmente os eventos que são devidos ao kamma e aqueles que derivam de outras causas, e, assim, devemos sempre nos esforçar ao máximo para alcançar os nossos objetivos. Mas olhando para trás em nossa vida, podemos, de repente, reconhecer a nítida influência do kamma passado e sentir o poder com que ele atua.

Certo número de nossas predisposições está embutido no material genético do DNA que recebemos de nossos pais. Muitas de nossas tendências já aparecem na primeira infância e levam, através de nossa interação com nossos pais, à formação de padrões comportamentais persistentes que têm impacto em toda a nossa vida. Entretanto, genética e psicologia não contradizem ou conflitam com a lei do kamma. De acordo com o Ensinamento do Buddha, é o kamma do novo ser que o direciona aos pais apropriados; é, em certo sentido, o kamma que “escolhe” a herança genética – e não o contrário.

A ciência de hoje está trabalhando duro para desenvolver um novo paradigma, um novo modo de entender a realidade. Contudo, a imagem incompleta e fragmentária que têm concebido até aqui não tem qualquer comparação com a profundidade do insight dos antigos sábios. O tipo de conhecimento científico que podemos adquirir em nosso tempo é bastante limitador. A ciência ainda tem um grande caminho a percorrer antes de alcançar o conhecimento que liberta. Talvez nos próximos séculos a ciência torne-se não apenas mais e mais dona de conhecimento, mas também mais sábia. Vamos ter esperança.

Saṁsāra
Saṁsāra significa o “ciclo de renascimentos” ou, mais literalmente, “o vagar constantemente”, uma expressão que transmite a sensação de falta de objetivos e inutilidade, de estar preso. Saṁsāra é o processo sem começo de nascimento e morte, ocorrendo em diferentes níveis de realidade mental e material. Para usar a terminologia clássica, diríamos que saṁsāra se estende ao longo de múltiplos mundos (loka) e envolve o renascimento em vários planos de existência (bhumi). O significado desses termos se tornará mais claro à medida que avançarmos.

Para compreender como o renascimento ocorre em diferentes mundos, uma pessoa deve em primeiro lugar entender que a mente e a matéria ocorrem em diferentes “densidades” e em diferentes “frequências”. Há várias frequências da mente próximas às várias frequências e densidades daquilo a que chamamos matéria. A maioria de nós teve pelo menos alguma experiência dos diferentes níveis de consciência, mas apenas poucos de nós conseguem reportar experiências em diferentes níveis de materialidade.

O tipo de consciência que surge um pouco antes da morte determina o plano de existência no qual o próximo renascimento ocorrerá. Não sei se a pessoa que está morrendo encontra o ceifador com a foice, o deus buddhista Yama ou São Pedro com seu grande livro com nossos pecados. Da perspectiva do Dhamma, a morte é mais como um carteiro que entrega as cartas no endereço que consta no envelope. Esse “endereço” é o sinal kâmmico ocorrendo na consciência no momento da morte. Ele pode ser criado por uma poderosa ação saudável ou nociva que realizamos durante nossa vida, por alguma ação que fizemos repetidamente ou por alguma lembrança que se manifesta durante o processo de morte. De acordo com a qualidade kâmmica dessa consciência que está morrendo, à morte se seguirá o renascimento num dos planos da existência saṁsārica – na luz, misturado ou um tipo pesado de realidade na nova vida. O potencial kâmmico do moribundo é a “carta”, ansiando pelo selo, e a consciência que renasce, a entrega. Podemos até imaginar a carta como um “e-mail” alcançando sua destinação quase instantaneamente.

O renascimento depende de um kamma individual e os fatores externos não mudam a direção. Uma vez, algumas pessoas pediram ao Buddha para realizar uma cerimônia para um parente morto a fim de ajudá-lo a renascer no céu. O Buddha não os mandou embora, pois na sua compaixão, quis que eles compreendessem as leis da realidade. Assim, ele deu aos tristes enlutados uma ordem incomum: “Misture pedras e ghee (um tipo de manteiga líquida) e jogue essa mistura em uma lagoa”. Quando os parentes surpresos tinham feito isso, o Buddha os instruiu: “Agora, chamem os sacerdotes e peçam que eles rezem: ‘Que as pedras subam e flutuem na superfície e que o ghee afunde até o fundo’”. As pessoas então começaram a entender que no ciclo do renascimento cada um se levanta ou afundade acordo com suas ações, não através do poder das orações e rituais.

O Buddhismo Theravāda reconhece trinta e um planos de existência, incluindo o reino humano. Alguns dos planos estão próximos do reino humano, outros estão muito distantes. O reino animal é o nosso vizinho saṁsārico mais próximo. Partilhamos a nossa residência material com eles, ainda que as nossas mentes trabalhem em diferentes frequências mentais. A cosmologia buddhista, com as suas perspectivas ilimitadas, visualiza muitos sistemas de mundos através do universo estratificado em vários planos, incluindo o humano.

Traduzido pelo Grupo de Tradução do Centro Nalanda
em acordo com o Autor
© 2011 Edições Nalanda

Nota: “Ensinamentos sobre o Kamma” consiste de um ensaio moderno sobre a doutrina do kamma (skr. karma, ação) no Buddhismo, escrito pelo venerável Ashin Ottama Sayadaw. Ashin Ottama é monge buddhista e professor na linhagem de Mahasi Sayadaw, abade do Mosteiro Bodhipala na Suíça e atualmente vivendo na Itália. Esteve em fevereiro de 2012 no Brasil a convite da Comunidade Nalanda.

Texto completo: nalanda.org.br

- Posted using BlogPress from my iPad

Location:Balneário Camboriú,Brazil

sábado, 10 de março de 2012

Sobre o "Carma"2



Excelente texto do monge Ashin Ottama Sayadaw que liderou o retiro de meditação mindfulness em fevereiro. Continuação do post 'Sobre o Carma'.
O Nariz Encostando Na Janela
A não-criação de kamma não é o objetivo principal de vipassanā ou meditação do insight. A prática da meditação do insight nos ensina a não reagir a nossa experiência com desejo ou aversão. É um treinamento em desprendimento de todos os objetos da mente, de todos os estados mentais, de todas as nossas experiências. Em vipassanā nós não interferimos em nossa experiência; nós principalmente aprendemos a reconhecer tudo o que aparece na tela de nossa mente tal como é. Observamos claramente, permanecemos fortemente conscientes de sua natureza. É um pouco como assistir televisão mas, em vez de ficarmos perdidos no programa, começamos a perceber a realidade da televisão e da tela; começamos a vê-la apenas como um televisor que está ligado. Quando estamos claramente conscientes de um objeto desta forma – mesmo que apenas por momentos esparsos – naqueles momentos não estamos nem atados ao objeto, nem repelidos por ele. Tal desapego é a condição necessária para vermos tudo sem distorção.
Praticamos vipassanā para desenvolver o insight, para conhecer nossas próprias mentes, para ver como a mente funciona, para entender sua verdadeira natureza, para experimentar a realidade última, para nos libertar das causas da servidão, infelicidade e miséria. Para isso, precisamos obter uma distância saudável de todos os tópicos e objetos de nossa consciência. Quando estamos tocando a vidraça com nosso nariz e estamos absorvidos com a vida nas ruas, nós não podemos ver a janela!
Não Há Bananas Em Macieiras.
Enquanto vivemos no nível de realidade relativa, estamos sujeitos à lei de causa e efeito. As relações kamma-vipāka agem e influenciam nossa vida o tempo todo. Frequentemente gostaríamos de ver as conexões entre o efeito e a causa para conhecer a causa exata de algum efeito particular. Às vezes temos uma intuição sobre a causa, mas geralmente, não temos. Nossa mente não tem a capacidade necessária para esta tarefa.
Os mecanismos do kamma são tão complexos que somente um Buddha pode delinear as ligações kâmmicas nos dramas da vida dos seres particulares. O Buddha declarou que o kamma e seus resultados são um dos quarto “inconcebíveis” (acinteyya), uma das quatro áreas praticamente impenetráveis pela mente humana comum (AN IV,77). O kamma não amadurece em nenhuma forma mecânica, linear, previsível, e nem de acordo com nenhum intervalo de tempo pré-determinado. A interação de muitos fatores de apoio e obstrução faz que seja difícil ou quase impossível para nós apontar as conexões entre os eventos.
O Buddha não explicou a lei do kamma em todos os seus detalhes, mas ele deu uma série de dicas práticas a respeito de como a lei funciona. Em um famoso sutta (MN 135), ele descreveu quatorze conexões entre as causas kâmmicas e seus prováveis resultados:
(1) A morte de seres vivos, se realizada repetidamente, leva ao renascimento em circunstâncias miseráveis, mesmo em reinos de alta densidade. Se o renascimento for como ser humano, o kamma irá causar uma vida curta.
(2) Abstinência de matar, a proteção da vida, conduz ao renascimento em reinos superiores de luz e felicidade. Se o renascimento for como ser humano, o kamma saudável dará suporte a longa vida.
(3) Aquele que é cruel, e causa dor e sofrimento aos seres vivos, sofrerá como consequência e ficará susceptível à doença.
(4) Aquele que se abstém de causar dano aos seres durante um longo período de tempo pode esperar felicidade e saúde.
(5) Raiva, ódio e má vontade causam uma aparência física feia.
(6) Paciência e tolerância trazem beleza como resultado.
(7) Inveja frequente causa perda geral de influência.
(8) Não ser invejoso, mas regozijar-se pelo sucesso dos outros é a base de grande influência.
(9) A mesquinhez limita o acesso à riqueza e conduz as pessoas à pobreza.
(10) As pessoas generosas conquistam riquezas facilmente.
(11) Aquele que é arrogante, ríspido e desrespeitoso pode contar com um renascimento em uma família humilde.
(12) Aquele que é humilde, gentil e respeitoso pode contar que renascerá em uma família próspera.
(13) Aquele que nunca questiona acerca da verdade ou sobre o que pode ser benéfico ou prejudicial caminha para um aumento de ignorância e estupidez.
(14) Aquele que investiga esses assuntos adquire conhecimento e está cimentando o caminho rumo à sabedoria.
Você pode discordar da lei de kamma, mas você não pode negar o fato evidente de que nossas ações têm alguma influência sobre nossa mente, que afetam nossa vida. Você pode pensar que o Buddha estava errado, porque você pode apresentar muitos exemplos contrários: por exemplo, você conhece um homem idoso muito legal que tocou seu próprio matadouro por toda a vida, ou sabe de uma família que tem sido muito rica por pelo menos duas gerações e todos são muito avarentos, ou você se lembra de sua mãe – tão carinhosa, amorosa e gentil – que sofreu de muitas doenças em sua vida e que, finalmente, morreu de um tipo terrível de câncer.
Algumas das aparentes discrepâncias no funcionamento do kamma podem ser compreendidas se reconhecermos que toda a gente possui três faces: a face como nós a percebemos, a face com que se vê a si próprio e a face como realmente é. Quando falamos acerca de kamma e dos seus resultados estamos especialmente interessados na “segunda face”, em como a pessoa se experiencia a si mesma. Existe uma diferença significativa entre a forma como as pessoas nos parecem ser e a forma como se sentem acerca de si próprias. Muitos ricos não conseguem desfrutar da riqueza que possuem e, na verdade, sentem-se pobres. Muitas pessoas sorridentes e cheias de sucesso quando chegam a casa deitam a cabeça na almofada e choram sentindo uma devastadora tristeza. Não se deixem iludir por aparências enganadoras. Recordemos como nos apresentamos perante os nossos colegas, como tentamos ocultar a parte embaraçosa da nossa personalidade.
É verdade, no entanto, que se examinarem o funcionamento do kamma na perspectiva de uma única existência, a relação do kamma com os seus frutos parecerá vago e indistinto. Poderão, então, questionar a validade da teoria do kamma, e pensar que muitas irregularidades e exceções de que se lembram desmentem a alegação de que é uma lei natural.
Podemos ver algumas indicações perceptíveis do funcionamento do kamma em nossa vida do quotidiano. O nosso meio é um pouco como um espelho: o que enviamos é provável que se repercuta sobre nós. Quando temos um bom dia, as coisas decorrem suavemente, todas as pessoas são simpáticas e amigáveis; quando temos um ressentimento nos afligindo, as pessoas zangam-se conosco por nada. A nossa boa disposição fará sorrir até as pedras; quando estamos enraivecidos, bateremos com a nossa cabeça numa janela aberta.
Verifiquem o que acontece em suas mentes quando fazem algo contra os seus princípios: nesse momento sua mente fica fraca, o mundo torna-se feio e durante alguns instantes começam a sorrir e a comportar-se como uns tolos. Por outro lado, se, devido a uma extraordinária constelação astrológica, saltarem de sua sombra e limparem todas as escadas de sua casa, provavelmente irão manter uma cara séria mas a sua mente estará num estado de celebração, preenchida por um tipo muito especial de energia agradável. Podemos chamar a isto “kamma instantâneo”. Tentem lembrar-se do que estava em sua mente quando morderam a língua.
No espaço desta vida presente, podemos também perceber algumas relações kâmmicas mais profundas: se realizarem ações saudáveis, altruístas, inteligentes, sentir-se-ão bem, o coração se abrirá e se sentirão conectados com os outros. Se cuidarem das pessoas, se forem honestos e amáveis, as pessoas naturalmente os ajudarão; se aproximarão e vocês terão muitos amigos. Mas se usarem suas habilidades para levar vantagem sobre as pessoas, invejar o sucesso delas, mentir e se comportar desonestamente, elas se afastarão e vocês ficarão isolados. Se fizerem coisas estúpidas, cruéis, más, sentirão muita tensão, ansiedade e conflitos e terão que enfrentar muitas dificuldades em suas vidas. Ainda que sejam ricos, sentir-se-ão miseráveis. Aqueles que trabalham sistematicamente em seus limites ampliarão seus horizontes; aqueles que vão dormir sempre que se sentem um pouco cansados podem esperar uma vida muito aborrecida. A compreensão dessas relações na vida é o objetivo e o fundamento de qualquer boa educação. Chamarei isso de “nível intermediário” da perspectiva kâmmica.
Para entender por que as pessoas são tão diferentes, por que são dotadas de temperamentos tão diferentes, para entender as curvas do destino, as tragédias da vida, as doenças, as distorções mentais e os acidentes, para entender por que alguns prosperam facilmente e outros, apesar de seu esforço, fracassam repetidamente, precisamos trazer para uma perspectiva “em grande escala”. Nós podemos entender a lei do kamma de maneira satisfatória apenas se levarmos em consideração os outros dois temas deste ensaio, renascimento e saṁsāra. As numerosas histórias das vidas passadas presentes nas escrituras sugerem que para obter um cenário mais completo do processo kâmmico nós teríamos que traçar as conexões entre o kamma e seus resultados em centenas de milhares de vidas. Apenas assim estaríamos na posição de reconhecê-lo como uma lei regente; apenas assim o kamma mostraria sua verdadeira face assustadora. Por que isso é assim? A sucessão de causa e efeito, a ordem no amadurecimento do kamma, é imprevisível, e o efeito do kamma pode vir a manifestar-se apenas depois de muitos éons.
O Laboratório Do Dhamma
Os ensinamentos de Abhidhamma Pitaka e dos seus comentários descrevem as relações de kamma-vipāka com maior detalhe que o Sutta Pitaka. Os suttas, os sermões de Buddha, são sempre diretos, são exposições “pragmáticas” do Dhamma com o objetivo de guiar e de edificar aqueles a quem são dirigidos. Aqui o Buddha fala muitas vezes na perspectiva da ignorância dos seus ouvintes. O Abhidhamma, por outro lado, enquanto teórico e abstrato, analisa a mente do ponto de vista da realidade última, descrevendo todos os fenômenos na posição da plena iluminação. Deste modo, temos duas perspectivas diferentes dos ensinamentos. Embora essas se complementem e se suportem entre elas, e não é aconselhável misturá-las de forma inadequada.
O Venerável Nārada Mahāthera exemplifica o relacionamento entre os dois tipos de ensinamento com uma analogia: na nossa vida comum dizemos que bebemos água, lavamos nossas mãos com água, usamos água para vários propósitos; mas quando entramos num laboratório fazemos experiências exclusivamente com H20 e entendemos a água de um jeito muito diferente. O Abhidhamma é como um laboratório do Dhamma, explicando a estrutura e a natureza da mente e o funcionamento do kamma nos mínimos detalhes.
Os Comentários vão ainda mais fundo e explicam a experiência humana como uma rápida sequência de momentos mentais. Esses momentos extremamente breves de consciência ocorrem em sequências fixas, que nós podemos considerar “moléculas” mentais. Essa sequência típica consiste de dezessete momentos mentais, um momento mental sendo um “átomo” da mente. É dito que bilhões de momentos mentais podem se dar em um segundo.
Cada um desses dezessete momentos tem sua função. Oito são vipāka, momentos de consciência resultante. Essas são as ocasiões em que algum kamma passado encontra a oportunidade de produzir o seu resultado. Dois momentos são considerados kâmmicamente neutros. Kamma em si é produzido pelos sete momentos chamados javana, que pertencem ao lado ativo da mente. Apenas uma pequena parte do kamma que criamos agora traz resultados na vida presente, e deste apenas um fragmento se manifesta imediatamente. Outra pequena parte do kamma criado dará resultados na próxima existência. O tempo para o amadurecimento do kamma restante não é fixo. Isso significa que a maior parte do kamma que estamos produzindo agora será herdada por “nós” em um futuro distante.
Se simplificarmos e generalizarmos as intricadas explicações do Abhidhamma sobre o funcionamento de kamma e vipāka, podemos dizer que:
(i) o que vivemos em (= nosso “mundo”),
(ii) o que experienciamos em nossa vida, e
(iii) como experienciamos isso,
são amplamente influenciados pelo nosso kamma passado. Mas como respondemos ou reagimos a essas experiências é a criação do novo kamma; é dessa forma que preparamos, influenciamos e tecemos a realidade do nosso futuro (Vocês percebem o movimento perpétuo? Vocês percebem a nossa responsabilidade pelas nossas ações e atitudes?)
Tomem cuidado, mais está para vir: o que nos está a acontecer agora – em traços gerais – é a expressão do nosso kamma passado. Podemos escolher e experimentar várias coisas na nossa vida, mas o que de fato acontece e a forma como irá acontecer depende muito do tipo e da qualidade do nosso potencial kâmmico acumulado. Por exemplo, o cônjuge com quem podemos viver, o emprego que podemos ter e conservar, as pessoas com as quais nos ligamos, a forma como as pessoas nos tratam (!), os nossos sucessos, fracassos e acidentes – todas estas voltas e reviravoltas da fortuna precisam ser sustentadas pelo kamma para acontecerem do modo como acontecem; de fato, simplesmente para acontecerem, elas precisam do input das nossas disposições kâmmicas. Sem um apoio adequado dos nossos recursos kâmmicos, elas ainda podem acontecer, contudo, só nos afetarão superficialmente. [2]
[2] Isso, é claro, é somente uma reflexão acadêmica. No abismo do tempo provavelmente já fizemos quase de tudo e, portanto, estamos kâmmicamente abertos a quase tudo. Ainda assim, para algumas coisas somos mais abertos e, para outras, menos. Portanto, algumas coisas mais provavelmente podem acontecer conosco que com outros.
O Abhidhamma aponta que até mesmo tornar-se consciente de um objeto é vipāka. Da multidão de fenômenos que nos rodeiam, aqueles que percebemos, como nos relacionamos com eles e os aspectos que tomam nossa atenção são funções de nosso kamma passado. De um modo geral, o nosso kamma determina o nosso renascimento, molda nosso caráter e disposições, descreve nossos limites e condições dos principais episódios de nossa vida. De acordo com o panorama mais preciso do Abhidhamma e seus Comentários, toda a nossa vida não é nada mais do que um fluxo de “formações mentais e materiais” (nāma-rūpa) rapidamente surgindo e desaparecendo. Nós podemos imaginar estas formações como “sequências mentais” surgindo com seus respectivos objetos. O amadurecimento constante de kamma passado em cada “sequência mental” é o resultado ou o lado passivo deste processo. Como reagimos e respondemos a esta experiência de vida é o lado ativo, a criação de um novo kamma, seja bom ou ruim.
Nós não podemos influenciar diretamente o amadurecimento do kamma passado, mas podemos tomar precauções para mitigar o amadurecimento do kamma ruim e ajudar o amadurecimento do kamma bom. Se estivermos conscientes da cobiça, raiva e ilusão assim que surgem, esses fatores insalubres não irão ter a oportunidade de enraizar em nossa mente, e o kamma insalubre irá ter uma chance bem menor de amadurecer. Além disso, somos capazes de influenciar efetivamente a maneira que respondemos a nossa experiência. Esse é o elemento essencial do livre arbítrio, o qual nos permite mudar a direção de nossa vida, de formar e reformar nosso futuro. Mas não espere que as mudanças aconteçam de uma só vez. Os antigos padrões do kamma e vipāka têm enorme inércia, uma tendência inveterada em se repetir várias e várias vezes. Nosso kamma, que é o potencial de nossas ações passadas, é como uma carroça sem cavalos e completamente carregada descendo ladeira abaixo: não irá parar ou mudar se você chutá-la. No entanto, se você é realmente sério, se você reorientar a sua mente e se esforçar persistentemente, você poderá dar uma nova direção e um significado mais profundo à sua vida. Teoricamente, bem como na prática, você tem esse poder. Não duvide. Faça!
Uma Mochila Cheia De Kamma
Enquanto discutindo estes tópicos com um dos meus professores de Abhidhamma, eu toquei, intencionalmente, no velho conundrum: “Onde está kamma armazenado?” Saya U Chit Tin respondeu com uma contra-questão: “Nos dias que correm, as pessoas falam muito acerca de direitos humanos, não é? Mas aonde é que eles guardam estes direitos humanos? No seu bolso? Nas suas cabeças? Nos seus ombros? Têm eles que os carregar numa mochila, de ontem para hoje?
Os professores de antigamente ilustraram esse ponto com o símile de uma árvore: quando chega a hora, a árvore dá frutos – maçãs, laranjas ou mangas – mas nós não podemos dizer que as frutas foram armazenadas no tronco, nos ramos ou nas folhas. Outro exemplo é a caixa de fósforos e o fogo: não podemos dizer onde o fogo está armazenado, mas quando certas condições estão reunidas o fogo surge.
E o que dizer da genética? Cromossomos e nucleotídeos não contêm o programa para todo o corpo, com as características e os temperamentos que geralmente são imputados ao kamma? Hoje, sabemos mais sobre as misteriosas moléculas de DNA e temos uma ideia de como esse esquema para todo o organismo é copiado e repassado a cada divisão celular. Do ponto de vista desse estudo, o material hereditário é considerado principalmente como o portão ou a entrada para um ser no plano humano ou animal da existência. Como determinado potencial kâmmico conecta-se, ao nascimento, com uma “casa de DNA” específica e depois a habita por toda uma vida, será tratado no próximo capítulo.
Alguns professores dizem que o potencial de kamma é contido no fluxo de consciência, ou no “contínuo vital”; outros dizem que é incluído dentro do fator mental chamado “faculdade de vida”. Eu pessoalmente acredito que todo o potencial de kamma, como também todas as impurezas mentais são passadas pelo relacionamento condicional entre sucessivos momentos mentais. Na realidade, eu diria que o kamma e as impurezas são o próprio processo de condicionamento. Alguns professores poderiam dizer que isto é muito improvável, até mesmo impossível, pois temos muito kamma passado, mas não penso que a marca do kamma “total” precise ser tão complicada. Por exemplo, considere que podemos chegar a todas as cores do mundo apenas misturando as três cores primárias.
Muitas pessoas assumem que um determinado ser nasce na concepção, com a fertilização do ovo, que gradualmente se desenvolve – pelos seus próprios poderes químicos e físicos – em uma pessoa madura e, finalmente, depois de setenta ou oitenta anos de vida ativa, dissolve-se no nada com a morte. Isto é como a vida de um indivíduo no parece quando a examinamos meramente com nossas faculdades sensoriais e suas extensões tecnológicas. Se, contudo, estivermos dispostos a admitir que os nossos sentidos nos proveem uma realidade muito limitada e parcial, ficaremos mais humildes, mais abertos a outros canais de informações, mais receptivos às mensagens que vêm dos sábios.
De acordo com o Dhamma, a célula fertilizada é apenas o componente biológico da concepção, que para se concretizar precisa também do componente mental. Essa é a corrente de consciência da vida anterior direcionada às condições da nova vida pelo poder do kamma. Nossos pais proporcionaram os componentes físicos de nossa vida, mas antes de qualquer coisa, nascemos de nosso kamma, que é nossa herança verdadeira. Gastamos o kamma antigo, mas também acrescentamos novo potencial kâmmico o tempo todo. O kamma que criamos agora é o útero real do qual nasceremos em nossa vida futura. Isso nos leva ao segundo tópico deste trabalho...
Continua...
Traduzido pelo Grupo de Tradução do Centro Nalanda
em acordo com o Autor
© 2011 Edições Nalanda
Nota: “Ensinamentos sobre o Kamma” consiste de um ensaio moderno sobre a doutrina do kamma (skr. karma, ação) no Buddhismo, escrito pelo venerável Ashin Ottama Sayadaw. Ashin Ottama é monge buddhista e professor na linhagem de Mahasi Sayadaw, abade do Mosteiro Bodhipala na Suíça e atualmente vivendo na Itália. Estará em fevereiro de 2012 no Brasil a convite da Comunidade Nalanda.
Texto completo em:
nalanda.org.br
- Posted using BlogPress from my iPad

Location:Balneário Camboriú,Brazil

quinta-feira, 8 de março de 2012

Sobre o "Carma".

No mês de fevereiro participei de um retiro de meditação mindfulness no centro Theravada Nalanda em BH, que convidou e organizou a vinda do Monge suíço Ashin Ottama para liderar o retiro. Segue abaixo, excelente artigo do monge, traduzido do inglês para o português pelo grupo de voluntários de tradução Nalanda do qual faço parte e uma foto do retiro.

Ven. Ashin Ottama (cidadão suíço nascido na República Tcheca em 1947) foi ordenado como monge buddhista em Myanmar em abril de 1992, mas já mantinha uma séria prática do Dhamma muito tempo antes. Fortemente inspirado pelos ensinamentos originais do Buddha ele se retirou em 1971 para as montanhas suíças a fim de praticar a meditação ...
Mais em:http://nalanda.org.br/featured/ven-ashin-ottama-em-fevereiro-no-brasil



Se Quisermos Compreender.

Se quisermos compreender os ensinamentos do Buddha em sua dimensão original – em sua magnitude e significância irredutíveis – é necessário que tenhamos a correta compreensão de três princípios básicos que formam a estrutura do Ensinamento: kamma, renascimento e saṁsāra. Para a maioria dos buddhistas da Ásia, essas são apenas três realidades da vida. Para a maioria dos ocidentais, no entanto, elas são muitas vezes três grandes pontos de interrogação.

Não é que não temos ideia de todo do que significam. Acho que todos nós temos pelo menos uma vaga ideia do que estas palavras indicam. O conceito de “saṁsāra” pode ser menos familiar, mas pensar em termos de “kamma” e “renascimento” tornou-se por vezes quase uma moda. O que é comum, no entanto, para muitas pessoas hoje em dia, é uma sensação persistente de incerteza, hesitação, ambivalência e dúvida sobre a real validade dos ensinamentos sobre kamma, renascimento e saṁsāra. “Até que ponto”, vocês podem ter-se perguntado, “é que estes ensinamentos pertencem à categoria das metáforas e parábolas, os mitos arquetípicos, ou ferramentas hábeis de educação ética, e em que medida são eles, de fato, princípios reais de funcionamento da nossa vida e universo? São estas teorias para ser consideradas literalmente, ou são apenas os remanescentes de um paradigma religioso antigo já não relevantes para seres humanos neste idade pós-moderna?”

Nos próximos capítulos eu vou fornecer algumas explicações e observações pessoais quanto ao significado destes três princípios do Ensinamento do Buddha. Não quero que aceitem passivamente as ideias apresentadas aqui. Meu objetivo, na verdade, seria estimular vocês para que possam cristalizar o próprio entendimento, figurando suas próprias respostas a todas essas questões vitais e abrangentes. Não vou promover uma inundação de provas e histórias impressionantes para forçá-los a aceitar a lei do kamma e do renascimento. Acho que já foi feito o suficiente neste campo e, para falar a verdade, não me entusiasmo com este tipo de abordagem. No meu entender, estes relatos de vidas passadas reforçam uma visão estreita e parcial do renascimento, e me parece duvidoso que possam transmitir às pessoas um entendimento mais profundo do mistério da vida e da morte.

Deixem-me ilustrar o meu ponto de vista com um exemplo: se abordássemos pessoas nas ruas de qualquer cidade europeia e lhes perguntássemos sem quaisquer rodeios: “Pensam que voltarão a renascer depois de morrer?”, talvez um terço respondesse “não”, outro terço – incluindo aqueles que acreditam numa religião tradicional – diriam “sim”, e o outro terço hesitaria dar qualquer resposta. Se tomarmos os Ensinamentos do Buddha como ponto de referência, então os três grupos estarão de certa forma certos e de igual forma errados.

De acordo com o Ensinamento, na hora da morte o corpo e a mente dissolvem-se e o mesmo corpo e a mesma mente nunca mais aparecerão de novo. Neste ponto, o primeiro grupo parece estar correto. No entanto, as forças vivas acumuladas, o potencial kâmmico acompanhado da ânsia pela existência criarão uma nova mente e um novo corpo, originando um novo ser. Assim, o segundo grupo parece estar correto. Mas, de acordo com o Ensinamento do Buddha, não existe um “eu” permanente que possa renascer. A própria questão é formulada de forma errada. Neste sentido, o terceiro grupo, que não adota nenhuma posição definida, talvez tenha respondido da maneira mais apropriada.

Do exemplo acima podemos ver que a abordagem dual “sim-ou-não” dos complexos problemas espirituais geralmente falha. A atitude rígida preto-ou-branco pode não ser suficientemente refinada para abordar e expressar os níveis profundos da realidade. É simplesmente rígida e simplista demais. O que provará ser mais útil a penetrar na verdade é atender à verdadeira natureza das coisas com uma mente cuidadosa, aberta e sensitiva. Neste texto gostaria de mostrar a vocês o caminho para uma nova dimensão na compreensão da nossa vida e morte, de toda a nossa existência.

Embora nossa visão de mundo tenha passado por muitas mudanças drásticas, a mentalidade ocidental ainda é fortemente comprometida com a crença de que a mente é um subproduto da função cerebral e que, portanto, a morte do corpo significa um fim definitivo à continuidade da vida e do fluxo da experiência consciente. Esta crença parece plausível, simples, lógica; talvez um pouco simples demais, pois induz as pessoas a pensar: “É só tirar o melhor proveito da sua presente vida e danem-se as consequências”. O Buddha rejeitou essa perspectiva materialista e disse que não está de acordo com a realidade. Além disso, podemos ser facilmente enganados por esta teoria. Quando adotamos a visão errônea de que nossas boas e más ações têm pouco ou nenhum impacto sobre a qualidade da nossa vida, tal visão pode levar-nos à ruína.

A teoria materialista não é por natureza “má” ou “diabólica”. Muito possivelmente, os materialistas da época do Buddha foram pessoas honradas, moderadas e humildes. O problema com essa filosofia está no fato de que descreve a inexprimível, inefável natureza do universo de uma forma tão restrita e unilateral que podemos nos referir a ela como uma verdadeira distorção da realidade.

Um desconfortável sentimento de apreensão ou de inquietude pode surgir quando refletimos sobre os ensinamentos de kamma, renascimento e saṁsāra da perspectiva da nossa própria existência: esses temas apontam diretamente para a nossa vida e a nossa morte, e para o que se segue. Enfrentarmos a nossa morte, e decifrarmos o mistério que está por detrás dela, é uma área difícil para todos nós. Nós sentimos – com inquietação – que não temos muito controle nesse processo. Algumas pessoas tentam contornar esses tópicos apenas para evitar a ansiedade e a confusão que os domina quando refletem sobre eles. No entanto, tal atitude é semelhante à de um paciente com dor de dentes, que toma analgésicos continuamente, em vez de ir ao dentista.

Para o Buddha, uma visão clara de suas próprias vidas passadas no saṁsāra e uma extensa visão dos efeitos do kamma nesse processo de renascimento incessante e recorrente, foram duas descobertas preparatórias que ele experienciou na noite de sua iluminação. Esses dois conhecimentos desencadearam o conhecimento final, o despertar para as Quatro Nobres Verdades, culminando na superação das “ulcerações” (āsavas), o atingimento da libertação completa, o atingimento do estado de Buddha.

Nossa motivação para praticar o Dhamma e nossa confiança na validade da mensagem do Buddha estão frequentemente relacionadas com o grau com que nós compreendemos kamma, renascimento e saṁsāra. Podemos nos beneficiar muito de uma compreensão mais profunda desta parte da doutrina do Buddha. Portanto, vou tentar apresentar estes três temas aqui de uma forma não dogmática do ponto de vista da cultura ocidental, usando a linguagem de uma mente formada no ocidente. Embora os três princípios estejam intimamente ligados, para os meus propósitos neste ensaio vou tentar apresentá-los separadamente, na medida em que seja possível.

Kamma
O princípio do kamma não é nada completamente estranho para nós, nada que já não conheçamos intuitivamente até certa medida. É a lei de que toda ação tem algum efeito. Além disso, nossas ações afetam a qualidade de nossa mente; cada uma de nossas ações tem um impacto em nossa mente, e, portanto, a qualidade de nossa mente tem uma influência direta da qualidade da nossa vida. Nós conhecemos essas relações. O ensinamento do kamma, no entanto, vai muito mais a fundo e fornece uma explicação mais completa de todo processo. Em nossa cultura somos acostumados a medir a qualidade de nossas ações predominantemente pelo impacto que elas têm em nosso entorno. Ao invés disso, no ensinamento do kamma nós focamos nos efeitos que nossas várias ações têm sobre nós mesmos como agentes da ação.

Todas as ações do corpo, da fala e da mente são kamma. Mais precisamente, kamma é a volição ou intenção (cetanā) por detrás da ação. Essas volições kâmmicas encerram em si o potencial de causar um determinado resultado correspondente, um vipāka. As volições são como as sementes, os resultados que ocasionam são como frutos. Na linguagem coloquial, frequentemente entendemos kamma como todo o potencial acumulado de todas as volições passadas e presentes que ainda não produziram os seus efeitos.


Um Paralelo Com A Física

O ensinamento do kamma é análogo à lei da física de preservação da matéria e da energia. Esta rudimentar lei da física nos diz que as coisas não desaparecem absolutamente. Em nosso universo relativo apenas transformações físicas e químicas acontecem, mas nada totalmente desaparece. Você não pode destruir mesmo uma gota de água. Se ela seca ou evapora, vai mais tarde recondensar; se ela congela, ela irá um dia derreter novamente. Você pode decompô-la em eletrólise em hidrogênio e oxigênio, mas se você colocar um fósforo aceso nesta mistura gasosa haverá uma pequena nuvem, e nas paredes do recipiente a umidade vai aparecer como as “cinzas” do fogo. (Você ainda se lembra das aulas de física, onde os experimentos sempre foram um pouco errados?)

Se desintegrarmos os átomos de uma gota d’água, obteríamos uma quantidade de energia terrificante: E=mc² (energia=gota d’água x a velocidade da luz)! A energia pode cristalizar de volta em matéria como podemos testemunhar nos aceleradores de alta energia, mas é bem mais provável que mudasse para outra forma de energia. Energia solar é um bom exemplo. No Sol, átomos de hidrogênio se fusionam em hélio. Essa fusão nuclear libera radiação energética no cosmos e assim temos a luz do Sol na nossa Terra. O verde da clorofila das plantas absorve a luz e as árvores crescem. Vocês cortam a árvore e fazem fogo. A energia estocada no Sol cozinhará seu alimento na fogueira do acampamento. Ainda, combustível fóssil explode nos cilindros dos motores. A antiga energia de nosso sol primitivo é ativada e seus carros seguem muito velozes até o próximo sinal vermelho. Vocês apertam o freio e transformam a energia cinética dos seus carros no calor dos freios.

Podemos viver alegremente inconscientes destes complexos processos físicos e químicos, mas não podemos negar a sua existência. O ensinamento de kamma pode ser considerado uma extensão desta lei universal – a lei da conservação de energia – vinda do reino visível da matéria para a dimensão mais sutil da mente. Também aqui, os impulsos mentais não desaparecem sem traço. Mais, cada uma das nossas volições deixa para trás uma impressão ou rebento de energia nas nossas mentes, e quando estes impulsos kâmmicos amadurecem, sob condições externas apropriadas, eles farão aparecer algum resultado. Não se enganem: os processos mentais não são fracos ou insignificantes. Vocês pensam que os novos aviões foram desenhados pelos grupos de trabalho e ateliers da Boeing? O avião foi primeiro criado pela mente: pelos pensamentos, conceitos e ideias dos engenheiros e artesãos da Boeing. Verdadeiramente, a mente é o precursor de todas as ações, o arquiteto da totalidade da nossa civilização.


A Água Que Busca O Mar

O Buddha descreveu o Nibbāna como Não-nascido, Não-originado, Não-criado, Não-formado (Udāna 8:3). A partir deste ponto de vista, qualquer coisa e todas elas perturbam a não-originada e primitiva paz e ‘salubridade’ do Não-formado e, assim, algum fenômeno se manifesta. No nível macroscópico, por nossas volições, nos afastamos do equilíbrio do “saldo zero” não-manifestado e agimos. Em relação à paz, qualquer vontade, boa ou má, é uma perturbação, um tipo de “dívida” que precisa ser “paga de volta”, um desequilíbrio que busca a restauração do equilíbrio. O equilíbrio perdido ou quebrado tem a tendência inerente para curar-se e assim reestabelecer o equilíbrio original.

Ven. Narada Mahathera escreveu: “Tão certo quanto a água procura seu próprio nível, assim também o kamma, dada a oportunidade, produz seu resultado inevitável”. O resultado, ou vipāka, é o amadurecer do kamma, a “devolução”, a ocasião em que uma potência kâmmica particular descarrega sua energia na forma de um resultado. Uma pequena parte do todo original foi reinstalado.

Este modelo de kamma é apenas um áspero esboço, e eu admito que de várias formas isso não é correto. Porém, penso que é o suficiente para explanar o que eu quero dizer: que o nascido ou formado é algo que está fora do equilíbrio, algo que está inerentemente quebrado ou fraturado.

A analogia da água chegando em nível do mar pode dar a impressão de que, antes de alcançarmos a liberação final, cada um e todo kamma tem de produzir seu resultado. Nos ensinamentos do Buddha isso não vem ao caso de modo algum. É possível que algum kamma antigo tenha de dar frutos, mas certamente nem todo o kamma de uma pessoa precisa frutificar antes que ela se ilumine. Nos ensinamentos do Buddha há quatro níveis de iluminação, cada um dividido em quatro estágios de “caminho e frutos” (magga-phala).

Cada nível de realização purifica ou desativa uma certa porção do kamma prejudicial acumulado. O primeiro e segundo eliminam as formas grosseiras de kamma prejudicial, que podem causar o renascimento em reinos inferiores. O terceiro estágio corta o kamma que possa produzir renascimento na esfera da existência sensorial. O quarto nível arranca todas aquelas forças kâmmicas que podem causar qualquer tipo de renascimento. No entanto, mesmo o Arahant, aquele que se libertou, ainda tem algum kamma restante, que sustenta a sua mente e o seu corpo até a sua morte.

Apenas o clímax final da prática do Dhamma, parinibbāna, o passamento do arahant, invalida completamente, anula, e desativa o potencial kâmmico acumulado. Ao longo do caminho, contudo, como uma instrução geral, o Buddha encoraja claramente a execução de ações saudáveis: “Abstenham-se de todo o mal, façam ações boas, purifiquem a vossa mente” (Dhp 183). No Anguttara Nikāya (VII, 58) ele inequivocamente estimula os seus seguidores a executar ações saudáveis.

Traduzido pelo Grupo de Tradução do Centro Nalanda
em acordo com o Autor
© 2011 Edições Nalanda

Postado em: http://nalanda.org.br/ottama/ensinamentos-sobre-o-kamma-1

Nota: “Ensinamentos sobre o Kamma” consiste de um ensaio moderno sobre a doutrina do kamma (skr. karma, ação) no Buddhismo, escrito pelo venerável Ashin Ottama Sayadaw. Ashin Ottama é monge buddhista e professor na linhagem de Mahasi Sayadaw, abade do Mosteiro Bodhipala na Suíça e atualmente vivendo na Itália. Estará em fevereiro de 2012 no Brasil a convite da Comunidade Nalanda.

* Se você tem ‘dotes linguísticos’ e gostaria de traduzir e dispor suas traduções em nossa sala de estudos para que mais pessoas possam ter acesso aos ensinamentos do Dhamma, nós o/a convidamos para entrar em contato conosco. Precisamos de tradutores do espanhol, inglês, alemão e outras línguas.

Nalanda.org.br

- Posted using BlogPress from my iPad

Location:Balneário Camboriú,Brazil

sábado, 25 de fevereiro de 2012

O que acontece quando um ser humano morre?




Renascimento
O que acontece quando um ser humano morre? Para o olho carnal, as propriedades materiais e mentais se desintegram. Ok. Mas isso é tudo? Em resposta a essa questão, diferentes interpretações sobre o [renascimento] surgem. De acordo com o Ensinamento do Buddha, o potencial do kamma, o impulso do desejo sedento, não desaparece simplesmente com a morte. As escrituras explicam que o fluxo de momentos mentais, impulsionado pelo desejo sedento, continua em uma nova forma, e assim, uma nova vida vem a ser. No sentido último, nossa vida presente é uma série de momentos mentais que rapidamente surgem e desaparecem com base em um único organismo físico. Após a morte, essa série de fluxos mentais continua, encontrando apoio em um novo organismo físico.

O último momento de vida é seguido por renascimento numa nova existência. Um sutta (AN 111,76) ilustra este processo com uma bela imagem: kamma é como o campo nutriente, desejo é como umidade; e consciência é como a semente a qual germinará e se desenvolverá no campo. Deste modo um ser renasce.

Serei eu o que renascerá ou é o ser na próxima existência algum outro? Antes que tentemos responder a esta questão, necessitamos compreender mais claramente a natureza do “mim” em torno do qual a questão anda à volta.

Um Pequeno Exercício
Por favor, comparem o bebê que vocês eram no seu primeiro ano de vida com a pessoa que vocês são agora: É a mesma pessoa ou não? “Certamente que não”, vocês dirão. Tudo bem, agora peguem vocês com a idade de cinco anos e o presente. Aos cinco vocês já podiam falar, mas aquele pequeno menino ou menina era alguém bem diferente, não era? Que tal aos dez anos? Nesta idade alguns de seus traços característicos já poderiam estar aparentes, mas seus interesses e aptidões eram bem infantis. Então vamos considerar os vinte anos. A pessoa que vocês eram aos vinte e a pessoa que vocês são agora: Elas são a mesma pessoa ou não? Está ficando difícil de dizer. Mas vocês provavelmente pensarão que as duas não são a mesma pessoa. Comparem o último mês e agora.

E ontem? E uma hora atrás? Na verdade, quando começaram a ler este ensaio, não eram exatamente o mesmo “eu” que são agora. Momento a momento não somos os mesmos, no entanto, também não somos completamente diferentes. Isto é exatamente o que renascimento significa: o ser da última existência, o ser desta vida e aquele que renascerá no futuro – não são bem o mesmo, mas também não são diferentes.

Os comentadores antigos ilustram o processo de renascimento com o símile de um selo. O selo e sua impressão não são a mesma coisa, mas também não são completamente diferentes. Na verdade, eles são conectados pela relação de causa e efeito. Nada é transferido, mas uma influência causal age. Similarmente, a vida passada não é igual à vida presente, e ainda assim não são completamente distintas, por estarem ligadas pela influência causal.

No Buddhismo uma “pessoa”, o “eu”, só tem realidade relativa, que não pertence à categoria de verdade suprema. A noção de “self” pode às vezes ser tão clara, forte e convincente; mas se virarmos os holofotes da nossa consciência sobre ela, de repente ela dá uns passos para trás, se dispersa e dissolve, e muda de lugar.

O Que É Esse “Eu”?
No Ensinamento do Buddha, o “Eu”, a ideia de “ego”, a noção de “meu eu” é uma concepção errônea, uma das mais poderosas expressões da ignorância e do desejo. Esses textos descrevem dois níveis diferentes da noção do “eu”. O primeiro é a presunção, que na sua forma mais sutil e aderente é a pura noção de “eu sou” (asmimāna). Os tipos grosseiros de presunção surgem quando comparamos o “eu” ilusório com nossas imagens de outras pessoas. Essa atitude comparativa e competitiva sempre resulta em outros três resultados possíveis: “eu sou melhor”, “eu sou pior” ou “eu sou igual”.

É interessante notar que não só os arrogantes “eu sou melhor”, mas também os autodestrutivos “eu sou pior”, assim como a errada ideia de “eu sou igual”, são tudo modos de presunção. O erro da atitude em “eu sou melhor – pior – igual” não é que eu não seja realmente melhor ou pior ou igual, mas que não há um real, um verdadeiramente existente “eu” que seja melhor ou pior ou igual.

O segundo nível de ilusão de “self” é denominado “crença na personalidade” (sakkāyadiṭṭhi): a visão na qual na mente e no corpo existe um “self” duradouro e essencial, um “eu” único e firme, uma alma interior. Existem inúmeras variantes desta “crença na personalidade”. Algumas pessoas assumem que seu complexo mente-corpo ou alguma parte deste, tal como a consciência, volição, percepção, etc., é o “eu” ou “mim”. Outras pensam de maneira contrária: que o “eu” possui uma mente e um corpo. Para algumas pessoas a mente e o corpo são o assento da alma. O materialista acredita que o “eu” é um produto do complexo mente-corpo. Algumas pessoas imaginam que o seu “self” ou alma são separados do organismo mente-corpo, etc.

Às vezes, as pessoas se identificam predominantemente com o corpo, às vezes, com a mente e as funções mentais. Todas essas crenças giram em torno de ideias erradas: “Isso é meu, este é o meu self”.

A ideia do “self” está fortemente enraizada em nossa mente; somos extremamente apegados a ela. Quando nossa vida está em perigo real, os instintos assumem o controle – a natureza cuida de si mesma. Mas quando nosso “eu” ou “ego” está em perigo, somos arrebatados pelas emoções.

O conceito do “eu” é um grande fardo, um fardo inútil. Libertarmo-nos desta condição não significa ficar pessoal e socialmente incompetente, como algumas pessoas incorretamente assumem. Um arahant é livre de apego a qualquer tipo de imagem própria, de todas as ilusões de um “eu” e, no entanto, é conhecido por ter “uma mente como um diamante”.

Do ponto de vista último, tudo aparenta ser muito diferente daquela forma que estamos habituados a conceber as coisas; toda a realidade é vista como tendo um modo de existência bastante diferente daquela que habitualmente assumimos. Sem uma experiência meditativa pessoal, contudo, poderá ser difícil para nós apreendermos nem que seja uma nuance desta afirmação, para já não falar de compreendê-la na sua totalidade. Quando a vida de uma pessoa é vista com um profundo insight, revela-se como sendo apenas o surgimento e desaparecimento muito rápido de consciência juntamente com os seus objetos. No seu conjunto chamamos nāma-rūpa, “mentalidade-materialidade”, a este processo impessoal e em permanente mudança de formações mentais e materiais. Sei que isto é muito difícil de compreender, mas, por favor, tentem seguir o meu raciocínio. Se olhassem para o vosso próprio dedo através de uma lente de um poderoso microscópio, teriam igual dificuldade em acreditar naquilo que iriam ver!

No último nível de realidade não falamos (nem podemos) falar de maçãs, pessoas, montanhas, sorvetes, AIDS e galáxias. Conceitos mundanos como “ontem”, “o ambiente”, “Paris”, “um problema”, “uma mulher” não têm lugar aqui. A este nível não há “pessoa”, “eu” ou “self”.

Conforme descemos ao nível da realidade convencional, ao nível da verdade relativa, vivenciamos uma sucessão rápida de fenômenos materiais e mentais através do conhecimento de objetos variados, sejam físicos ou mentais. A primeira ideia do “eu” surge com o reconhecimento destes objetos através da percepção. Este é o estágio em que nossa experiência divide-se em duas partes: o “observador” e o “observado”, um sujeito interagindo com um objeto. Este é o berço da dualidade.

Do ponto de vista experiencial o conceito de “eu” tem muitos níveis e intensidades. Para os meus propósitos imediatos deixe-me dividir o espectro de diferentes “eus-ilusão” em dois grupos: o “eu” e o “Eu” (“Meu Eu”). O sentido muito básico de um “sujeito”, mencionado acima, mescla-se em intensidades gradualmente mais “solidificadas” de “Eu” com cada vez mais limites distintos entre “mim” e o “mundo”. Aqui, a ideia de uma personalidade separada e uma identidade pessoal aparecem, com a noção de seus pertences e posses.

Não há nenhum problema com o sentido funcional de “eu”, que é frequentemente usado até mesmo por seres completamente iluminados. No nosso dia a dia, precisamos usar as expressões “eu” e “meu”. Seres plenamente realizados, no entanto, não estão apegados a essas ideias e libertam-se da sensação de “eu” assim que não precisam mais dela. Esta habilidade distingue-os claramente das pessoas comuns.

O Sofrimento Realmente
Mais acima nesta escala de ilusão do ego está o “eu” e “meu eu” autoreferente, que reflete sobre si mesmo, o senso de self alimentado por competitividade e fervor emocional. Esta forma de ilusão do ego é muito auto-interessada, acompanhada por um forte senso de propriedade e autoria. Por esta razão, também é altamente vulnerável. O senso individualista e autocentrado de “mim” surge frequentemente nas nossas reflexões privadas. Torna-se ainda mais intenso quando a nossa personalidade é exposta e ameaçada, reforçada ou enfraquecida, por causa do sucesso ou fracasso, aplauso ou humilhação, vitória ou derrota.

Este autodenominado “ego” é como uma marca registrada da ignorância e apego cristalizados em nossa vida; é a imediata, sempre pronta, inesgotável fonte de sofrimento de alta qualidade. Entretanto, por favor, lembrem-se que embora este sentido de “self” seja a fonte do sofrimento, ele não é a causa do sofrimento. A causa do sofrimento é o nosso apego à imagem de “eu mesmo”. O “eu” é como um balão que pode ser inflado ou desinflado; ele pode explodir, mas uma nova bolha irá rapidamente substituí-lo.

No Ensinamento do Buddha não abordamos a prática com a ideia de dissolver o “ego” ou o “eu”. Tal atitude poderia realmente fortalecer a ideia errada de si, sugerindo que há um eu que precisa ser dissolvido. O ensinamento não está preocupado com o “eu”, mas aponta, sim, diretamente para o “não-eu”. Na prática da meditação vipassanā aprendemos a ver que aquilo que chamamos de nosso “eu” é apenas o desenrolar de um impessoal fenômeno mental e material. Tal como acontece com outras ideias, a visão sobre o não-eu (anattā) pode ocorrer em intensidades diferentes com o desenvolvimento progressivo da meditação vipassanā. Conforme nossa prática amadurece percebemos com clareza crescente a auto-vacuidade, a natureza desabitada da mente e corpo. O Ensinamento do Buddha não lida com expressões múltiplas de ignorância individualmente, mas foca diretamente no corte das raízes de todos os vários tipos de males. A “crença na personalidade” e a presunção são apenas dois dos dez “grilhões”. Para a libertação integral todos os dez devem ser superados [3].

[3] Os dez grilhões (samyojana): (1) crença na personalidade, (2) dúvida cética, (3) apego a rituais, (4) desejo sedento sensual, (5) má vontade, (6) desejo sedento pela existência celestial, (7) desejo sedento pela existência imaterial, (8) presunção, (9) inquietude, (10) ignorância.

Meditação vipassanā é o mais alto estágio no treinamento do Dhamma e, além disso, é um estágio muito difícil. Algumas pessoas praticam a meditação do insight para reajustar a proporção de felicidade e tristeza em suas vidas. Isso tem o seu valor, mas nós devemos ser cuidadosos para não diluir os Ensinamentos do Buddha em um tipo de terapia. Nós podemos comprar um excelente aparelho de som de alta definição por $10.000,00 apenas para ouvir a previsão do tempo pela manhã, mas este não é o propósito para o qual um instrumento tão sensível foi feito.

Além do benefício extramundano da meditação vipassanā, o Dhamma também oferece formas simplificadas de treino que permitem alcançar benefícios e bênçãos nas nossas vidas correntes, sendo uma prática que pode trazer felicidade para as nossas vidas no momento presente de forma ainda mais direta, por exemplo, mantendo os padrões básicos de conduta ética (os cinco preceitos), desenvolvendo bondade amorosa e boa vontade, desenvolvendo e oferecendo generosidade, ensinando-nos a mostrar o respeito, oferecendo o serviço altruísta, restringindo os prazeres sensoriais, etc. Estas qualidades não são apenas nutrientes de uma vida próspera, com sentido, mas também requisitos para um treino meditativo avançado.

A maior forma de ilusão do “eu” é o egoísmo cego. Isso também pode assumir diferentes formas. Algumas pessoas, obcecadas por este tipo de insensibilidade, experimentam o seu ambiente como uma paisagem lunar estéril e desolada, habitada seja por aliados ou inimigos. Normalmente, eles percebem as pessoas como objetos úteis ou ameaçadores. A ideia fixa de constante ameaça é combatida com agressão. Outros podem ficar completamente perdidos por desejos sensuais, até mesmo ao ponto da total escravidão.

Por: Ven. Ottama Sayadaw
Publicado em: nalanda.org.br

Traduzido pelo Grupo de Tradução do Centro Nalanda
em acordo com o Autor
© 2011 Edições Nalanda

Nota: “Ensinamentos sobre o Kamma” consiste de um ensaio moderno sobre a doutrina do kamma (skr. karma, ação) no Buddhismo, escrito pelo venerável Ashin Ottama Sayadaw. Ashin Ottama é monge buddhista e professor na linhagem de Mahasi Sayadaw, abade do Mosteiro Bodhipala na Suíça e atualmente vivendo na Itália. Esteve em fevereiro de 2012 no Brasil a convite da Comunidade Nalanda.

- Posted using BlogPress from my iPad

Location:Balneário Camboriú,Brazil

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

O que é Kamma ou Karma ?




O que é Kamma?

Kamma é uma lei impessoal e natural que opera de acordo com nossas ações. É uma lei por si mesma e não possui nenhum criador. Kamma opera em seu próprio campo sem a intervenção de um agente externo, independente e regente.

O kamma pode ser exposto na linguagem simples de uma criança: faça o bem e o bem virá para você, agora e depois. Faça o mal e o mal virá para você, agora e depois.

Na linguagem da colheita, kamma pode ser explicado dessa forma: se você semeia boas sementes, irá ter uma boa colheita. Se você semeia sementes ruins, irá ter uma má colheita.

Na linguagem da ciência, kamma é chamado de lei de causa e efeito: toda causa tem um efeito. Outro nome para isso é a lei da causação moral. Causação moral funciona no reino moral, assim como a lei física de ação e reação funciona no reino físico.

No Dhammapada, kamma é explicado dessa maneira: a mente é o chefe (o que vai à frente) de todos os estados bons e ruins. Se você fala ou age com uma mente ruim, então a infelicidade o seguirá como a roda segue o casco do boi. Se você fala ou age com uma mente boa, então a felicidade o seguirá como a sombra que nunca o deixa.

Kamma é simplesmente ação. Nos organismos vivos, há um poder ou força para a qual são dados diferentes nomes, tais como tendências instintivas, consciência, etc. Essa propensão inata força cada ser consciente a se mover. Uma pessoa se move mental ou fisicamente. Seu movimento é ação. A repetição das ações é hábito, e hábito se torna caráter. No Buddhismo, esse processo é chamado de kamma.

No sentido último, kamma significa ação ou volição, tanto boa quanto má. ‘Kamma é volição’, disse o Buddha. Assim, kamma não é uma entidade, mas um processo, ação, energia e força. Alguns interpretam essa força como ‘influência-da-ação’. São nossos próprios atos reagindo em nós. A dor e a felicidade que uma pessoa experimenta são os resultados de suas próprias ações, palavras e pensamentos reagindo nela mesma. Nossas ações, palavras e pensamentos produzem nossa prosperidade e fracasso, nossa felicidade e miséria.

Kamma é uma lei natural e impessoal que opera estritamente de acordo com nossas ações. É uma lei por si mesma e não possui nenhum criador. Kamma opera em seu próprio campo sem a intervenção de um agente externo, independente e regente. Como não há nenhum agente escondido dirigindo ou administrando recompensas ou punições, os buddhistas não rezam para alguma força sobrenatural a fim de influenciar os resultados kammicos. De acordo com o Buddha, kamma não é nem predestinação nem determinismo imposto a nós por poderes ou forças misteriosas e desconhecidas aos quais devemos impotentemente nos submeter.

Os buddhistas acreditam que se irá colher o que se plantou; somos o resultado do que fomos, e seremos o resultado do que somos. Em outras palavras, não somos absolutamente o que fomos, e não continuaremos a ser o que somos. Isso simplesmente significa que kamma não é um completo determinismo. O Buddha indicou que se tudo está fixado ou determinado, então não haveria livre arbítrio, nem vida moral ou espiritual. Meramente seríamos escravos de nosso passado. Por outro lado, se tudo é indeterminado, então não poderia haver cultivo do crescimento moral e espiritual. O Buddha, assim, declarou a verdade do Caminho do Meio: tal kamma deve ser entendido nem como estrito determinismo, nem como absoluto indeterminismo, mas como uma interação de ambos.

Do livro: No que os Budistas acreditam. Leia na integra na internet - http://noqueosbuddhistasacreditam.wordpress.com/


- Posted using BlogPress from my iPad

Location:Balneário Camboriú,Brazil

Related Posts with Thumbnails